Sagrado Profano: Escarnecer a padroeira das ovelhas negras

 O que houve com a música brasileira? Se rendeu tanto ao streaming, que as músicas antigas se tornaram alternativas. Mas tudo que é alternativo ultimamente se torna mainstream, fazendo com que artistas da nova geração tenham que referenciá-las da forma mais caricata e vomitada.

    Ultimamente saiu um comercial da Trident, patrocinadora do festival Rock In Rio, que completa 40 anos. E uma coisa que me pegou de um jeito, foi aquela divisão dos rostos de Rita Lee e Luísa Sonza. Aquela comparação absurda que eu achava que era um delírio somente dos fãs da Luísa. Me incomoda bastante esta comparação. Não porque eu odeie os fãs da Luísa e toda "forçação" que fazem para vincular a imagem dela à Rita Lee, sendo que as duas não tem nada a ver uma com a outra. Mas por uma ignorância das pessoas de esquecer o legado da nossa padroeira das ovelhas negras.

    Rita Lee surgiu como uma das figuras mais emblemáticas da música brasileira durante as décadas de 1960 e 1970, um período marcado por transformações sociais e culturais profundas. Esse era o tempo do movimento hippie, que pregava os ideais de "Peace and Love" e desafiava as normas tradicionais da sociedade. Foi também a época da Guerra do Vietnã, um conflito que dividiu o mundo e provocou uma onda de protestos, especialmente entre os jovens.

    Nesse contexto, os Beatles dominavam a cena musical global, transformando para sempre a indústria com sua inovação e estilo únicos. O impacto deles foi tão grande que influenciou uma geração inteira de artistas, incluindo Rita Lee. Além do fenômeno dos Beatles, o período também viu o surgimento do punk, um movimento que trouxe uma nova atitude rebelde e DIY (faça você mesmo) para a música e a moda.

    Rita Lee foi fortemente influenciada por esse caldeirão cultural, mas uma de suas maiores inspirações artísticas foi David Bowie. Bowie, conhecido por sua capacidade camaleônica de reinventar sua imagem e som, serviu como uma referência essencial para Rita, que também se destacou por sua originalidade e ousadia em romper com as convenções. Bowie não só influenciou seu estilo musical, mas também seu visual e a maneira como ela desafiava as expectativas, criando uma persona única que se tornou um ícone da cultura pop no Brasil.

    Assim, Rita Lee não apenas se inspirou nesses movimentos e artistas, mas também contribuiu para moldar a cultura musical brasileira. E estamos falando de um contexto brasileiro, em que chamamos de Modernismo, um tempinho ali da sua terceira fase. Onde buscávamos uma identidade nacional, porém ao mesmo tempo éramos rebeldes e odiávamos qualquer ideia de facho da ditadura militar.

    O próprio nome da banda "Os Mutantes", da qual Rita Lee foi integrante antes de seguir carreira solo, refletia perfeitamente a essência do grupo: a ideia de que a música deveria passar por mutações constantes, transformando-se em algo diferente e, idealmente, melhor. Esse conceito estava profundamente enraizado na filosofia da banda, que buscava sempre inovar e explorar novos horizontes musicais.

    Como a própria Rita Lee mencionou em uma entrevista, essa vontade de mutar e evoluir era uma característica central da banda. "Os Mutantes" não se contentavam em seguir os caminhos convencionais; eles estavam sempre experimentando, rompendo com os moldes tradicionais e criando algo totalmente original. 

Minuto 01:35 - Por que Mutantes?

    O som dos Mutantes era uma fusão de influências que iam do rock psicodélico ao tropicalismo, resultando em uma mistura única que desafiava as normas da música popular da época. Essa originalidade se manifestava não apenas nas composições e arranjos, mas também na escolha dos instrumentos. Além das tradicionais guitarras elétricas, "Os Mutantes" incorporavam elementos inusitados em suas músicas, como o teremim — um instrumento eletrônico que produz um som etéreo e misterioso, utilizado em muitas das canções da banda para criar atmosferas únicas e vanguardistas.


    Entramos, então, no fascinante universo do Tropicalismo, um movimento artístico, cultural e musical que teve um impacto profundo e duradouro na definição da cultura brasileira. Surgido no final dos anos 1960, o Tropicalismo foi uma revolução que fundiu tradições brasileiras com influências estrangeiras, resultando em uma síntese original e provocadora. Embora tenha suas raízes no modernismo, o Tropicalismo foi muito além, moldando uma nova identidade para a música e a arte no Brasil.

    Liderado por figuras icônicas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, e os integrantes de Os Mutantes, incluindo Rita Lee, o movimento também contou com a contribuição de outros nomes notáveis, como Tom Zé, Nara Leão, e o maestro Rogério Duprat. Esses artistas não apenas se destacaram individualmente, mas também colaboraram de forma intensa, criando uma obra coletiva que desafiou as convenções e abraçou a experimentação.


    O Tropicalismo se caracterizava pela capacidade de absorver e transmutar influências estrangeiras, principalmente o rock, transformando-as em algo completamente novo e inconfundivelmente brasileiro. Essa fusão de estilos resultou em uma música vanguardista, que explorava a originalidade sem perder de vista as raízes culturais do Brasil. Era uma mistura de tradição e inovação, de samba e guitarra elétrica, de poesia e política.

    Um dos marcos mais importantes do movimento foi o álbum "Tropicália: ou Panis et Circenses", lançado em 1968. Esse disco coletivo, que reuniu as principais vozes do Tropicalismo, é considerado um manifesto sonoro do movimento. Ele não só sintetizou as ideias e a estética tropicalista, mas também desafiou o status quo com suas letras críticas e seu som ousado. Com canções como "Panis et Circenses" e "Baby", o álbum combinava a sofisticação musical com uma postura subversiva, representando a essência do movimento em sua forma mais pura. O Tropicalismo foi uma verdadeira revolução cultural que redefiniu o que significava ser brasileiro em um mundo cada vez mais globalizado. E Rita Lee, junto com seus companheiros de viagem, desempenhou um papel fundamental nessa transformação.

    Rita Lee conquistou o Brasil com sua música, criando sucessos que se tornaram trilhas sonoras de várias gerações. No entanto, a parceria que mais se destacou em sua carreira e vida pessoal foi com Roberto de Carvalho, seu namorado na época e que logo se tornaria seu esposo. Essa união não foi apenas amorosa, mas também profundamente criativa. Como companheiros na música e na vida, Rita e Roberto formaram uma dupla imbatível, criando hits inesquecíveis que marcaram a história da música brasileira. Juntos, eles compuseram algumas das canções mais emblemáticas da carreira de Rita Lee, como "Mania de Você," "Lança Perfume," e "Baila Comigo," que rapidamente se tornaram sucessos nacionais.


    Além de seu talento musical inegável, Rita Lee era conhecida por sua personalidade excêntrica, única e original. Ela nunca teve medo de ser diferente, sempre vivendo de acordo com suas próprias regras, sem se importar com as expectativas dos outros. Rita era uma verdadeira ovelha negra, desafiando convenções e explorando de tudo um pouco, mantendo essa atitude rebelde mesmo na terceira idade, apesar de se considerar "careta," como costumava dizer com seu característico senso de humor.

    Rita Lee sempre foi a frente de seu tempo, abordando temas que eram considerados tabus em sua época, como a liberdade sexual e de gênero, o feminismo, e outras questões sociais importantes. Em suas canções e entrevistas, ela sempre se posicionou como uma voz firme em defesa dos direitos humanos, trazendo à tona discussões sobre igualdade, respeito e empoderamento. Sua atitude ousada e irreverente desafiava as normas conservadoras da sociedade, abrindo espaço para que outras pessoas pudessem também se expressar livremente.

    Durante os anos de repressão da ditadura militar no Brasil, Rita Lee viveu um dos episódios mais emblemáticos de sua vida. Em 1976, ela foi presa sob a acusação de porte ilegal de drogas, em um episódio claramente marcado pela injustiça e pela arbitrariedade do regime. O que torna esse episódio ainda mais chocante é que, no momento da prisão, Rita estava grávida e não fazia uso de nenhuma substância ilícita, o que evidenciava a natureza política e persecutória da ação contra ela.

    A prisão de Rita Lee foi um duro golpe, mas também revelou a coragem e o espírito irreverente que sempre a caracterizaram. Após passar uma semana na cadeia, ela foi liberada, e, em um gesto que se tornou icônico, saiu da prisão vestida de prisioneira, em uma roupa listrada em preto e branco. Esse ato simbólico foi uma forma de protesto, uma demonstração pública de que, apesar de ter sido injustamente encarcerada, ela não seria silenciada ou intimidada.


    Em 1995, Rita Lee protagonizou mais um episódio marcante de sua carreira, desta vez envolvendo a Igreja Católica. Durante o show de abertura para a lendária banda The Rolling Stones no Brasil, Rita subiu ao palco vestida como Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil. Esse gesto, embora carregado de simbolismo e uma clara expressão de sua irreverência, gerou uma grande controvérsia e provocou duras críticas por parte da Igreja Católica.

    A escolha de Rita de se vestir como uma figura religiosa tão venerada foi vista por muitos como uma provocação, especialmente em um país onde o catolicismo tem uma presença tão forte. A Igreja Católica considerou o ato como uma ofensa e uma blasfêmia, condenando publicamente a performance. A mídia também repercutiu o caso, polarizando opiniões e colocando Rita no centro de um debate nacional sobre os limites da arte e da liberdade de expressão.

    Rita Lee, fiel ao seu espírito irreverente e ao seu histórico de desafiar convenções, defendeu sua performance como uma forma de arte e uma expressão pessoal. Para ela, a música e a arte eram meios de provocar reflexão e questionar as normas estabelecidas, inclusive as religiosas. A cantora nunca teve medo de abordar temas controversos ou de enfrentar as críticas, acreditando firmemente no direito de se expressar livremente, mesmo que isso significasse ir contra instituições poderosas.


Rita era uma defensora apaixonada dos direitos dos animais. Ao longo de sua vida, ela usou sua popularidade e influência para promover o respeito e o cuidado com todas as formas de vida, falando abertamente sobre a importância da proteção animal. Um dos episódios mais notáveis nesse sentido ocorreu em 2001, quando Sandy e Junior, então uma das duplas mais populares do Brasil, fizeram um comentário durante uma entrevista, afirmando que os animais em rodeios eram bem cuidados e não sofriam maus-tratos. Rita Lee, rapidamente rebateu a declaração dos dois.


    Enfim, Rita foi uma das figuras mais importantes da música e da cultura brasileira, com uma trajetória marcada por ousadia, inovação e ativismo. Ao longo de sua carreira, ela não apenas revolucionou o rock brasileiro, mas a cultura em si, sendo uma das principais tropicalistas. Compará-la a artistas como Luísa Sonza demonstra uma falta de compreensão do impacto histórico de Rita Lee.

    Embora Luísa Sonza, até o momento seja uma artista popular e influente na cena atual, temos uma certeza de que por trás de seu "impacto" não passa de um grande investimento de empresários e de gravadoras. "Ah, mas ela ganhou prêmios internacionais". Qualquer artista que movimenta um grande número de streams hoje em dia é capaz de ganhar algum prêmio em categorias onde os próprios fãs podem votar, criando até mesmo mutirões para arrecadar a maior quantidade de votos para que a artista possa vencer. E isso chega a ser chato de tão massificante que é.

    Não houve mais artistas que tivessem propósitos mais concretos, como na época do Tropicalismo, do Clube da Esquina (MPB de Minas Gerais), da Vanguarda Paulista, até mesmo com os Novos Baianos. A música brasileira está carente de movimentos artísticos, ou mesmo, de artistas com esta consciência cultural. É necessário qualidade invés de quantidade.

    Qual é o propósito de Luísa Sonza ao tentar vincular sua imagem à de Rita Lee, sabendo que ela não compartilha a essência de ser uma ovelha negra? E qual foi o impacto de Luísa Sonza para a cultura brasileira que justifica essa comparação?

    O que será da arte num mundo globalizado, onde já não existe espaço para novas ideais a não ser o que as grandes massas já consomem?

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